sábado, 3 de setembro de 2011

Texto sobre Heschel: filósofo e teólogo judeu

O significado da teologia profética na filosofia judaica de J. Abrham Heschel
            Para compreendermos a profundidade do chamado profético é preciso que tenhamos em conta a profundidade dada pelo povo judeu à idéia de justiça: ora, compreender a justiça que o homem deve com relação aos outros homens deve lembrar a infinita misericórdia de seu Senhor. Ser justo é reflexo do amor infinito e primordial que o homem deve ao seu Senhor, mas, ao mesmo tempo, o temor profundo que lhe deve. Tanto o homem que obedece aos justos ditames por amor a Deus, tanto aquele que os obedece por temor, cumprem com o seu dever, pois agem de acordo com a justiça. Portanto, antes de falarmos propriamente de profecia, é preciso falarmos do conceito de justiça, tal como se encontra no judaísmo.
             Quando olhamos a estátua da justiça, que nos promete um tratamento isonômico, igualitário a todos os homens, sentimos tristeza porque essa estátua promete algo que não é cumprido. Sabemos que a justiça não é aplicada a ricos e pobres e que justamente são os pobres os que lotam as casas de detenção e são também os pobres que não encontram chance de reconstruir suas vidas quando saem das penitenciárias. Ora, o ideal de justiça oferecido pelos profetas bíblicos, fato enfatizado por Heschel, jamais poderia ser conivente com essas anomalias. Assim, há um uso extremamente positivo da imaginação no patos profético: os olhos não estão vendados, mas extremamente abertos à violência feita aos outros, aos pobres, aos marginalizados.
            Segundo Heschel, justiça social foi a mensagem principal dos profetas bíblicos. Há um forte contraste entre a imagem da justiça em sua calma e serenidade e a imagem de justiça oferecida por Heschel: a justiça de que falam os profetas é intensa, é uma arrebatadora correnteza que nos arrasta e que exerce seus poderes de maneira violenta. Os moralistas cantam o valor da virtude, do amor. Os profetas, de outro lado, falam da injustiça, da opressão. Os moralistas são a expressão da consciência dos homens: expressam seus valores, suas convicções. Os profetas, do contrário, expressam as verdades indigestas, as quais ninguém quer ser lembrado, justamente porque expressam a raiz profunda do pecado. Mas eles falam justamente para os que sedentos, clamam por justiça. “Você não deve afligir qualquer viúva ou órfão... Se você os afligir eles clamaram a mim e Eu certamente ouvirei o seu clamor”. (Êxodo 22, 22-23). Ao matar o irmão Abel, o Senhor Deus lembra a Caim não que ele descumpriu o preceito, mas que o sangue de seu irmão está clamando por justiça.
            E aqui, vem a grande distinção entre o Deus de Abrão, Isac, Jacó, Jesus Cristo, o Deus a quem Pascal devota amor e o deus dos filósofos, a quem Pascal devota desprezo. A perda da devoção ao Deus pessoal, perda essa que tem Espinosa como um de seus principais articuladores, significa para filósofos como Heschel, a perda do sentido de justiça, compaixão e misericórdia bíblicos. Para o judaísmo não somos enquanto não somos reconhecidos como uma pessoa. Na filosofia de Levinas, por exemplo, é o outro quem me constitui. Só sou um ser humano depois que ouço o seu apelo. Não haveria substituto para esse Deus que desse conta do mesmo recado: o Deus idéia, fruto do racionalismo filosófico, não apenas não ouve nossos apelos, mas também não nos castiga por nossas injustiças. Ele funciona como o agradável refúgio de nossa apatia: não precisando nos comprometer com os homens, podemos nos abandonar no amor a uma idéia, a qual não exige nada de nós. Isso porque esse Deus não é capaz de nos lembrar acerca delas. Ou seja, mais do que nos lembrar da possibilidade do castigo, mais do que nos prometer o céu ou o inferno, o Deus profético nos lembra acerca de nossas obrigações para com nossos irmãos. Por isso a justiça é superior ao amor: aquilo que não podemos fazer por amor, façamos então por temor da injustiça. Amor pode denotar um favor, mas justiça denota um dever. Assim, só é válido o amor como mandamento, como dever. Superar essa imagem nos possibilitará uma motivação para a justiça com efeitos similares ou superiores àqueles que foram obtidos pelos profetas?
            Contra a serena neutralidade do Deus dos filósofos, o Deus dos judeus é um Deus que acorda quando ouve o clamor de seu povo. Não é a estabilidade e a permanência o que interessam nesse apelo: o que importa é a pessoalidade, a empatia com o sofrimento. Quem sofre, onde está a dor? Essa é a pergunta ética. Ela não se vale por preceitos: mede-se pela sensibilidade. Daí que o que vale na narrativa bíblica é sua vitalidade e dinamismo: onde está a dor, ai está o Deus. Onde não há mais possibilidade de vida, a vida acontece. Isso porque a vida é justamente a sensibilidade. Não há ética sem esse sentido profundo de sensibilidade. Pensar é, sobretudo, e antes de tudo, sentir.
            No entanto, não nos parece que esse sentido profundo que relaciona pensamento e afetividade estejam separados na filosofia de Espinosa. Sua filosofia é uma filosofia cujo ápice é o amor a Deus. Seu Deus, sendo a totalidade da Natureza, exige um sentido de amor que é união com todos. A ontologia de Espinosa é uma ética, como ele mesmo diz: falar sobre o Ser é poder agir de modo a expressar o máximo amor que é capaz a potência pensante. Não seria Espinosa, nesse sentido, tão parecido com os judeus (já que ele mesmo é um judeu!)?. O Deus de Espinosa não é um Deus a quem chego não apenas por um desejo sincero de compreender, mas por um anseio imenso de amar infinitamente. Apenas Deus é quem sou capaz de amar sempre mais e mais, porque quanto mais eu O compreendo, inevitavelmente mais eu O amo. Lembremo-nos que no início do Tratado da Reforma do Intelecto é o desejo de amar quem impulsiona Espinosa em sua busca filosófica. Afinal, a filosofia é antes de tudo, uma forma elevada de amor.
            Mas não basta a motivação amorosa. Podemos amar aquilo que nos alivia, que não exige de nós sair de nossa zona de conforto. Aliás, é isso o que geralmente amamos. O recado profético é indigesto porque ele avança na zona da contracultura. Toda cultura quer se auto-celebrar e esconder tanto seus algozes, quanto suas vítimas. Assim, ela pode até gerenciar atos de caridade e solidariedade, mas não aceita a possibilidade de ver suas injustiças desveladas. O patos profético, ao anunciar a injustiça, revela uma forte potência imaginativa para anunciar outra ordem, fundada sobre a justiça divina. Assim, a imaginação profética parece ter um papel mais forte e poderoso do que a autoconsciência lúcida celebrada pelos filósofos. Essa imaginação consegue detectar o grito de dor dos que sofrem melhor do que a consciência filosófica, que é a primeira a destilá-los como malucos e traidores. Isso desmantela a ordem social vigente, exigindo uma nova ordem por vir. 
            A potência imaginativa também foi estudada por Espinosa. De fato, quem controla a imaginação das pessoas, é quem detém o poder político. Espinosa mostra que o perigo da imaginação reside no fato dela não se capaz de por si mesma auto revelar-se como verdadeira ou falsa. Daí que ela possui tanto um poder de coesão, como de dispersão. Mas a imaginação é tão humana, que dela jamais nos libertamos. Daí que seja necessário que essa potência seja regida pela intuição intelectual. Orientar-se pela intuição intelectual é pensar por inteiro, de corpo e mente: é pensar sentindo, necessariamente. Destarte, não seria justo acusar Espinosa de um escapismo estóico, como se fosse possível ao homem subtrair-se de suas paixões. O que podemos, no caso de Espinosa, e também no caso da profecia, é não cair na tentação do desespero, arma do inimigo. Assim, esse apelo imaginativo profético tem o seu valor porque exige de nós superar essa tristeza e caminharmos em direção aos outros, o que já é uma atitude alegre. De qualquer modo, a imaginação em si, sendo uma potência do corpo, é positiva. Podemos sim usa-la de modo a suscitar em nós paixões que possibilitem a vida social. O exercício da piedade é válido. No entanto, preferível a ele, pode ser o imaginar-se no lugar do outro. Esse imaginar-se no lugar do outro não é uma neutralização da alteridade e da singularidade de outra pessoa. Mas imaginar-se justamente numa situação desfavorável, como estrangeiro, como sem teto, sem dinheiro, sem comida, sem oportunidades de conservação da própria existência. A imaginação tem um grande papel socializante, porque ela pode justamente mostrar o outro como expressão finita de Deus, o que compreendemos pela inteligência. 
            Os profetas nos lembram que sempre que reduzo os que gritam ao silêncio, estou legitimando a opressão. Lembram-nos também que a verdadeira crítica é a verdadeira ética: é prestar-se a cuidar dos que gemem. O verbo hebraico gritar, Za’ak, nos lembra   para expressar tanto o gemido e lamento, como serve também no sentido de apresentar uma queixa legal. Aliás, fato semelhante ocorre no português: queixar-se tanto é lamentar-se, como apresentar uma queixa com valor judicial. De qualquer modo, a queixa se relaciona com o sentimento de injustiça e com o desejo de reparação. Ouvir o grito dos que foram reduzidos ao silêncio é fazer uma crítica verdadeira, mostrando que as coisas não estão dando certo.
Rochelle

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