segunda-feira, 26 de março de 2012

Sobre o Filme: "O caçador de Pipas"
Por Lee Merseli
 
Amir e Hassan foram amamentados pela mesma mulher e viveram a mesma infância de brincadeiras, filmes e personagens na Cabul dos anos 70. Mas enquanto Amir era filho de um homem rico e muito respeitado entre os afegãos, Hassan era o filho de lábio leporino do empregado da casa de Amir.

Hassan fazia tudo pelo amigo, inclusive o defendia nas brigas de rua. Amir era covarde e se aproveitava da falta de estudos de Hassan, inventando histórias e significados de palavras, por exemplo. Também sentia ciúmes quando seu baba (pai) parecia mais orgulhoso do comportamento de Hassan do que das atitudes de seu próprio filho.

No inverno de 1975, Amir teve a chance de conquistar seu baba. Venceu o famoso campeonato de pipas local. E para que Amir chegasse em casa com o troféu - a última pipa cortada -, Hassan correu atrás da pipa azul. Em um beco, encontrou Assef, um garoto de família rica que odiava os hazaras como Hassan e perseguia Amir também, por este ser amigo de um hazara.

Assef violentou Hassan, porque este não lhe entregou a pipa azul e também porque Hassan, para defender Amir, o ameaçou com o estilingue uma vez. Amir assistiu a cena, mas escondido, sem fazer nada para ajudar Hassan.

Para distanciar seu sentimento de culpa, Amir armou uma situação para mandar Hassan e o pai, Ali, embora de casa. Simulou que Hassan pegou alguns presentes que ele ganhou de aniversário. Sabia que baba considerava o ato de roubar o único pecado do homem. Quando baba perguntou a Hassan se ele fez mesmo isso, Hassan confirmou para proteger Amir da fúria de seu pai. Baba perdoou Hassan, contudo Ali foi embora com seu filho mesmo assim, para protege-lo de Amir.

Nessa época, o Afeganistão já começava a enfrentar a invasão soviética e algum tempo depois Amir e seu baba precisaram fugir do país. As experiências terríveis pelas quais passaram aproximaram, finalmente, pai e filho. Eles foram morar nos EUA.

Na América, Amir encontrou o amor do pai e de uma bela mulher. Soraya e Amir não tiveram filhos e baba morreu de câncer. Porém, Amir vive um bom casamento e torna-se escritor.

O passado de culpa e covardia vem à tona quando Rahin Khan, amigo de baba que defendia Amir e o incentivava a ser escritor quando era criança, pede para que ele o visite no Paquistão. Nesse encontro, Amir descobre que Hassan na verdade era seu irmão, filho do mesmo pai. Seu baba havia roubado o direito dele e de Hassan de saber a verdade.

Rahin ainda revela que os Talibãs mataram Hassan e sua esposa, quando ele tentava defender a casa de Amir, onde havia voltado a morar. Porém, o filho de Hassan, Sorab, estava vivo e foi levado a um orfanato.

Amir tem, então, a chance de se redimir pelo que fez a Hassan. Volta ao Afeganistão e encontra seu país destruído pelo Talibã. Busca o filho de Hassan e o encontra na casa de um talibã, que o comprou de um orfanato para usa-lo como objeto sexual. Para surpresa de Amir, esse talibã é Assef.

Amir enfrenta Assef e leva uma surra que o deixa quase morto. O filho de Hassan, tão bom quanto o pai com o estilingue, acerta o olho de Assef e foge com Amir.

Quando Amir sai do hospital, leva o menino para o Paquistão. Tem dificuldades para adota-lo devido às regras do consulado americano. Seguindo os conselhos de um advogado, Amir cita para Sorab a hipótese de coloca-lo em um orfanato enquanto correria o processo de adoção.

Decepcionado, o garoto tenta se matar, cortando os pulsos. Amir o encontra na banheira, logo depois de saber que um tio de Soraya ajudaria a conseguir um visto para Sorab.
Amir o leva ao hospital a tempo. Desesperado pela vida de Sorab, ele descobre sua própria fé em Deus. Quando Sorab se recupera, ambos voam para os EUA. Sorab não volta a falar e perde o amor pela vida. Muito tempo se passa até que um dia, em uma festa de rua entre afegãos, garotos começam a brincar com pipas e Amir oferece uma para o sobrinho. Quando Amir consegue cortar a pipa de um rival, Sorab esboça um leve sorriso e Amir corre feliz atrás do troféu para dar a ele, com a esperança de reconquistar a confiança de Sorab.

https://supra.ucb.br/exchweb/bin/redir.asp?URL=http://www.youtube.com/watch?v=WV5-_9UvGzU
 
Lee Messerli
O Homem e o Não-lugar: Análise do filme “O Terminal”.
*Por Roberto Wagner Urquiza 
O homem se encontra diante do irracional. Sente em si o desejo de felicidade e de razão. O absurdo nasce desse confronto entre o apelo humano e o silêncio irracional do mundo. Albert Camus (O mito de Sísifo, p.41).


O mundo contemporâneo, comprimindo cada vez mais o tempo e o espaço, tende a mergulhar o sujeito numa situação de constantes movimentações. O homem está afastado de referenciais fixos e estáveis, tem dificuldade de saber quem ele é realmente, vive no que o filósofo Gilles Lipovetsky (2005, p.7) chama de “era do vazio”. Para o filósofo“a sociedade hipermoderna é aquela em que reina a indiferença da massa, na qual domina o sentimento de repetição e estagnação, na qual a autonomia particular avança por si mesma, a sociedade é ávida por uma identidade”. O homem perdeu sua fé nas promessas da ciência moderna e da religião, se tornou um hedonista radical, se tornou um super-homem, para Fromm (1987)
            O homem tornou-se um super-homem, mas super-homem com poderes sobre-humanos que não atingiu o nível de razão super-humana. Na medida em que aumentam seus poderes, ele se torna um homem cada vez mais pobre, impõe-se sacudir nossa consciência ao fato de que nos tornamos tanto mais desumanos quanto mais nos convertemos em super-homens.
 Assim, o homem vive um tempo em que se sente como no mito de sísifo, rolando inutilmente uma pedra montanha acima, e vê essa pedra rolar montanha abaixo, o mito virou sinônimo de trabalho inútil, conforme Albert Camus, muito bem relatou, mas Camus (2006) nos dá um conselho pertinente, que no final é “preciso imaginar Sísifo feliz”.
            O homem tem passado por um processo de desumanização que o tem levado a colocar o racional a serviço do irracional, “pois quanto mais os indivíduos se libertam das regras e dos costumes em busca de uma verdade pessoal, mais seus relacionamentos se tornam fratricidas e associais.” (LIPOVETESKY, 2005, p.45).
 O individualismo surge como um mal contra o qual o homem tem lutado, e surgem então os não-lugares, a idéia de Marc Augé para não-lugar é a de uma instalação que é utilizada para a circulação de pessoas e bens, no não-lugar, não há espaço para exercitarmos nossa humanidade. No filme “O terminal” um imigrante se vê obrigado a fazer do não-lugar um lugar, um ambiente que é impessoal, um local passageiro, passa a ser um lugar onde a interação humana confere sentido.
 O que se vê no filme é uma inversão, o não lugar passa a ser um lugar, o protagonista confere ao não lugar um pouco de sua humanidade, arranja trabalho, faz amizade com os funcionários, consegue uma namorada, o típico vazio que é o não-lugar agora é o lugar onde cada um se constrói sujeito de sua história. Essa transformação do não-lugar para lugar, foge totalmente do convencional; as pessoas vivem mais em não-lugares do que em casa, geralmente se almoça em self-service, assiste-se a televisão enquanto se espera sua vez no dentista, enfrenta-se a fila do ônibus na rodoviária.
            O protagonista oferece solidariedade e altruísmo, instigando a socialização, o que foge da realidade dos tempos hipermodernos, um tempo de excesso e vazio existencial.

 BIBLIOGRAFIA: 
AUGÉ, Marc. Não- lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Trad. Lúcia Mucznik, Bertrand Editora, 1994.
CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e paulina Watch. 3ªed. Rio de Janeiro, 2006. 
FROMM, Erich. Ter ou Ser? Tradução Nathanael caixeiro. 4ª ed. Rio de Janeiro. LTC, 1987. 
LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio. Ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Tradução Therezinha Monteiro Deutsch. São Paulo. Manole, 2005.
*Licenciado em Química e Pedagogia,  Especialista em Filosofia e Química, Licenciando em Filosofia pela Universidade Católica de Brasília.

Angústia e silêncio: Bergman e o teatro da vida.
*Por Roberto Wagner Lopes Urquiza


Tudo tem seu tempo,
Há um momento oportuno para cada empreendimento.
Tempo de calar, e tempo de falar.
Tempo de amar, e tempo de odiar.
Eclesiastes.


Nossa sociedade tem como essência o mundo do superficial, do fast-food, geralmente amam-se os imitadores, o hedonismo é marca indelével de nossos dias, usar uma máscara para parecer algo que não somos é algo comum, desejamos parecer cada vez mais inteligentes e bonitos, porque queremos a admiração do outro, bem sucedido é o homem narcisista , incapaz de refletir sobre si mesmo, frágil em seus relacionamentos, trata o outro sempre como objeto, a mentira é sua maior arma. 
Pessoas assim estão em todos os locais, nas religiões, nas empresas, não são a toa que os manuais de auto-ajuda são os mesmos para religião e empresas.
É quase impossível não sermos afetados pelo mundo das aparências, Baudrillard tem razão quando fala de uma realidade simulada. Como não deixar-se levar pela rotina esmagadora de um mundo planejado para nos afastar cada vez mais daquilo que desejamos ser? Como não se enganar a ponto de tratar o outro como objeto, pior, como não tratar a si mesmo como objeto? Seria o silêncio a solução? Não posso deixar de ver a incrível beleza nesse maravilhoso filme de Ingmar Bergman chamado “Persona”, mais ainda, comparar cenas desse maravilhoso filme com as idéias de Kierkegaard.
Todo mundo já sentiu em algum momento da vida o desejo profundo de ficar em silêncio, mas, não devemos misturar o silêncio gerado pela melancolia e a angústia psicológica, com a angústia kierkegaardiana que leva a um silêncio reflexivo que gera a liberdade, não posso deixar de registrar um diálogo maravilhoso entre as personagens Alma e Elizabeth do filme “Persona”.
Pensa que não entendo? O inútil sonho de ser. Não parecer, mas ser. Um sentimento de vertigem, Cada tom de voz uma mentira. Cada gesto, falso. Você pode se fechar, se fechar pra o mundo. Então, não têm que interpretar papéis, fazer caras, gestos falsos. [...] Entendo porque não fala.
“Ser” nesse mundo de imitadores é algo que necessita de um grande esforço, será que Bergman tem razão, devo calar para não ser mais um, que tem sua existência anulada pela sociedade das aparências?
Devo expressar que me agrada muito quando ela diz que está tomada pelo sentimento de vertigem, enfim pela “Náusea” sartriana, o que vemos é uma atriz que se recusa a atuar no teatro na obra de Sófocles “Elektra” e sem hesitação decide se calar. Elizabeth  é tomada pelo silêncio, atuar é algo que lhe provoca dor, é no encontro com a personagem Alma que ela tem a oportunidade de se encontrar, ou melhor, de se fundir, é pelo olhar do outro que ela enxerga a si mesma.
Não deixa de ser extremamente curiosa a idéia de que mesmo em silêncio é observando o outro que Elizabeth tem a oportunidade de alcançar a plenitude. Será o outro motivo de tormento e chave para liberdade do mundo das aparências? É observando Alma que Elizabeth encontra a si mesmo e deixa o silêncio.
Vale lembrar que Alma é na Mitologia Psychê, Bergman nomeia seus personagens de forma a nos lembrar que é olhando em silêncio para o mais profundo de seu ser que podemos chegar a uma existência que ultrapasse o simulacro das aparências e nos leve ao uma existência significativa.
Quando na fala transcrita a cima a personagem deixa claro que seu sentimento é de vertigem não posso deixar de pensar também em Kierkegaard e a angústia humana de uma vida de liberdade.
Kierkegaard recebeu uma educação religiosa rígida e exagerada sobre a noção de pecado, algo que vai atormentá-lo para sempre, para acabar de dificultar tudo ele não consegue se casar com o amor de sua vida uma jovem chamada Regina Olsen, acaba assim optando por viver uma vida repleta de angústia marcada pela fé em deus.
A angústia é um tema que leva o homem a pensar sua existência e que só surge quando o homem descobre-se “arremessado na vida”, sua visão sobre o homem o obriga a se posicionar, como ser existente, diante do mundo, note diante de uma infinidade de possibilidades.
As exigências da ética vão fazer com que cada homem deixe o silêncio e  reconheça suas falhas, mas isso não é o suficiente para ele existir em paz, a angústia toma conta dele, o sentimento de absurdo o acompanha.
Kierkegaard é inimigo de toda tentativa de enquadrar o homem em um sistema? Ele detestava a idéia hegeliana que enquadrava o homem dentro de um sistema rígido e objetivo, para ele a “a realidade que o homem tem maior conhecimento é a sua própria realidade, somente a realidade singular concreta interessa” (PENHA, 2008, p.16). O homem só apreende a realidade subjetivamente, a subjetividade é a realidade.
A personagem de Bergman Elizabeth está cansada e angustiada, opta pelo silêncio, deseja encontrar a si mesmo, vive cansada de mentir para si mesmo. É comum classificarmos o outro e julgá-lo conforme todo tipo de falso critério, uma espécie de processo Kafkaniano, em que o outro não faz a menor idéia do que se passa. Respeitar o silêncio do outro é a forma de estendermos a mão para ele. Essa é a única maneira de curar a angústia humana, a angústia dos homens livres. É sim possível ultrapassar esse mundo efêmero das aparências e ser livre. Pois é essa angústia que permite o mergulho em si mesmo. Que nos leva ao infinito. O silêncio pode sim salvar o homem de si mesmo. No fim, Salomão está correto, existe sim tempo para calar.


Bibliografia:
PENHA, João. O que é existencialismo? São Paulo. Brasiliense, 2008.

 KIERKEGAARD, Soren. O Desespero Humano. São Paulo. Martin Claret, 2008.

KIERKEGAARD, Soren. O conceito de angústia. São Paulo. Presença. 1968.

*Licenciado em Química e Pedagogia,  Especialista em Química e Filosofia, graduando em Filosofia pela Universidade Católica de Brasília.

O Homem Duplicado em Jorge Luis Borges
*Roberto Wagner Lopes Urquiza
  
Afinal, ao recordar, não existe ninguém que não se encontre consigo mesmo.
O Outro, Jorge Luis Borges.



O conto “O Outro” de Jorge Luis Borges em sua obra “O Livro de Areia” é um conto que nos remete a um tema muito trabalhado na literatura e filosofia, a idéia do “Duplo” do homem se reencontrando, o homem no espelho da vida, olhando a si mesmo e recordando o passado.
Jorge Luis Borges em seu conto relata um encontro entre um Borges com aproximadamente vinte anos e um Borges mais velho com cerca de setenta anos, em um primeiro momento percebe-se um sentimento de estranhamento nesse encontro, parece que os dois são homens completamente diferentes, enquanto o Borges jovem diz que escreveria um livro que cantaria a fraternidade de todos os homens, o Borges mais velho pergunta com sarcasmo se ele se sente realmente irmão de todos os homens, o Borges mais jovem diz que seu livro contaria as histórias de homens oprimidos e dos párias do mundo.
            Borges velho novamente vê na sua versão juvenil alguém inocente e diz que só existem indivíduos, lembrando que “o homem de ontem não é o homem de hoje”, percebe-se que o Borges velho se sente muito incomodado com esse encontro, olhar o passado e vê sua versão mais jovem e incoerente, traz a tona um turbilhão de sentimentos que antes não existia, um misto de compaixão, angústia chegando até mesmo em alguns momentos de amor. Bartucci diz (1996, apud Barbieri) “o confronto com o estranho põe em questão as certezas sobre si mesmo. A diferença é ameaçadora porque fere a própria identidade”.

Borges maduro quer evitar essa ameaça a sua identidade. Ele diz: (2009) “Meu primeiro propósito foi esquecê-lo para não perder a razão”. Aqui  percebe-se o grande desconforto que é olhar para si mesmo, analisar nossas ações principalmente quando somos mais jovens é algo que provoca espanto, olhar o passado pela perspectiva do presente nos provoca o desejo de não errar mais. Em determinados momentos da vida desejamos voltar no passado e sanar possíveis erros, aqui nos lembramos de Nietzsche e seu mito do eterno retorno, lembrar o tempo de juventude nos remete a um tempo de profunda ingenuidade.
A versão mais jovem de Borges sente-se cheio de si, parece corajoso, algo muito comum nos jovens de hoje, o eterno desejo de infinito, o desejo de salvar o mundo de suas agonias e salvar os oprimidos, já o Borges mais maduro chega duvidar que alguém exista realmente, o homem não é sempre o mesmo, mudamos constantemente, o que hoje desejamos, amanhã não é mais motivo de angústia.
Borges nos remete a infância, pois sabe que são nossas lembranças da juventude que nos tornam o que somos. A versão jovem de Borges acredita no poder do novo e da imaginação, possui medo daquilo que é impossível.
            O Borges mais velho reconhece que é impossível que eles se compreendam, ele sente um misto de misericórdia e amor por sua versão mais jovem, Borges diz (2009) “Eu que não fui pai senti por esse pobre moço [...] uma onda de amor.” Assim como um pai ao ver a tolice e ingenuidade do filho ele deseja que sua versão mais jovem se reencontre que olhe com maior clareza para si mesmo.
Por fim, nesse reencontro ambos acreditam que tudo não passou de um sonho, o encontro era um misto de realidade e sonho, quando Borges velho evoca o passado faz o que Merleau- Ponty chama de reabrir o tempo. Buscar em nossa memória parte de um homem que sabemos que não mais existe, reabrir o tempo e olhar para suas ações no passado, é o caminho para a maturidade.
Ter memória e relembrar o passado é ter em mente que todo homem também é outro homem, é no encontro com o outro que me torno o que sou. Sigamos o conselho de Neruda: “Talvez não tenha vivido em mim mesmo, talvez tenha vivido a vida dos outros [...] Minha vida é uma vida feita de todas as vidas.”

*Licenciado em Química e Pedagogia, Especialista em Química e Filosofia, Licenciando em Filosofia pela Universidade Católica de Brasília.

 Bibliografia:

BARBIERI, Natália Alves. Temporalidade e Permanência: O Eu e o Outro de Jorge Luis Borges. Disponível em: www.estadosgerais.org/encontro/IV/…/Natalia_Alves_Barbieri.pdf.               Acessado em 08 de Julho de 2010.
BORGES, Jorge Luis. O Livro de Areia. São Paulo. Companhia da Letras, 2009.

sexta-feira, 23 de março de 2012


A diferença entre imagen e semelhança
Paul Evdokimov (La connaissance de Dieu selon la Tradition Orientale, X. Mappus, Lyon. Paulinas, Madrid, 1969).  (tradução Rochelle Cysne)

            Para o gênio hebreu, sempre concreto, imagen-tselem possui um sentido muito mais forte do que no cristianismo. A proibição das imagens talhadas por parte da lei se explica pela significação dinâmica e realista da imagen: como o nome suscita a presença do que representa; “Demouth" que se traduz por similitude, semelhança, incita-nos a vê-lo como outro. Podemos comparar com a noção "schaliach": o apóstolo de um homem é como um outro de si mesmo.
            A “imagem” é inteira, sagrada por excelência, não pode sofrer nenhuma alteração. Mas se a pode reduzir ao silêncio e fazê-la ineficaz pela modificação das condições ontológicas. A imagem, fundamento objetivo, não pode manifestar-se senão na semelhança subjetiva; a queda a fez radicalmente inacessível a forças naturais do homem. Sem estar pervertida, a imagem se fez inoperante. São Gregório Palamas  precisa a tradição: “Em nosso ser imagem, o homem é superior aos anjos; mas é inferior na semelhança porque é inestavel; depois da queda, temos rechaçado a semelhança, mas não temos perdido o ser a imagem”. Cristo devolve ao homem o poder de operar.
            Os sacramentos do batismo e da unção do crisma restauram a “semelhança no ato”, o que libera imediatamente a imagem cuja radiação se faz perceptível nos santos e nas crianças. Graças à imagem, o homem conservou sempre a liberdade de opção. Ainda no tempo da Antiga Aliança, o desejo de bem subsiste, sem que, no entanto o homem possa atualizá-lo em sua vida. Em sua teologia da graça, os padres distinguem claramente entre o “livre arbítrio da intenção” e o “livre arbítrio dos atos”. Afirmam a plena liberdade do desejo de ser salvo, a sede de cura, a capacidade de formular o ‘fiat’. Depois da Encarnação, a graça atualiza a deiformidade virtual. “Ser criado a imagem de Deus” se converte em “existir a imagem de Deus”.
            Desde então, como diz são Maximo: “Tendes duas alas para alcançar o céu: a liberdade e a graça”. A todo esforço da vontade responde a graça para levá-la a seu termo. Deus faz tudo em nós, a gnose, a vitória, a sabedoria, a bondade e a virtude, sem que nós aportemos absolutamente nada senão a boa disposição da vontade”; mas esta boa disposição da vontade é um ato absolutamente livre que coloca o agir humano dentro do agir divino. A “virtude” é esta disposição que dispara a ação da graça e faz os atos sinérgicos. Em um sentido, o desejo do homem é já operante, porque responde ao desejo de Deus e assim atrai a vinda da Graça. Este é todo o papel imenso do “fiat” da virgem Maria. A anunciação é como uma pergunta que Deus dirige a toda a humanidade: tens sede de salvação, queres verdadeiramente levar em tuas entranhas e engendrar teu próprio salvador? E de parte de todos, a Virgem diz Sim. Este sim é a condição objetiva da Encarnação:o verbo não podia forçar a natureza humana; a Virgem se oferece livremente da parte de todos.
            Para os Padres, um ser não é humano senão quando está maduro pelo Espírito Santo, quando é efetivamente ‘imagem que se parece’. Um santo é chamado liturgicamente ‘semelhante’. A imagem constitutiva e normativa, em sua função de deiformidade, torna reais as palavras: “Sede perfeitos como vosso pai celestial é perfeito”. A cristologia ensina  que em Cristo “os filhos no Filho” são realmente os filhos do Pai “semelhantes ao Filho”. São Gregório de Nissa subtrai a função da imagem: “para participar de Deus é indispensável possuir no ser algo correspondente ao participado”. A “Deus é amor” corresponde o “amo ergo sum” do homem. Calisto na “Filocalia” diz: “O mais elevado que sucede entre Deus e a alma humana é amar e ser amado”.
Assim, a antropologia dos padres e sua noção da imagem mostram ao ser humano deiforme em sua estrutura mesma, destinado à comunhão deificante e capaz de conhecer a Deus a medida de sua própria capacidade de receber-lhe. Como escreve um mestre da vida espiritual contemporâneo: “Deus se dá aos homens segundo sua sede. Aos que não podem beber mais, não dá mais do que uma gota. Mas ele gostaria de dar a torrentes, para que por sua vez os cristãos possam apagar a sede do mundo”.