quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Aportes Magníficos

Segue o nível de nossas discussões...

Olá, queridos estudantes!




Na semana passada eu estava envolvida com o Colóquio Internacional de Filosofia da Mente, e por isso não participei do fórum interdisciplinar. Mas amores, lá pensei muito sobre a questão da identidade e sobre o ceticismo de Hume acerca desse conceito. Quero compartilhar com vocês as minhas ideias sobre isso.

Diz Hume nas Investigações acerca do entendimento humano:

“A humanidade não é nada além de um feixe de percepções que se sucedem umas às outras com rapidez inconcebível e se encontram em fluxo e e movimento perpétuos. Nossos olhos não podem mover-se em suas órbitas sem mudar nossas percepções. Nosso pensamento é ainda mais variável que nossa visão, e todos os nossos sentidos e faculdades contribuem para essa mudança; nem há nenhum poder da alma que permaneça inalterado sequer por um momento. A mente é uma espécie de teatro, onde várias percepções se sucedem, passam, repassam, desaparecem e se misturam em uma variedade de maneiras e situações. Não há propriamente nenhuma simplicidade nela em nenhum momento, nem uma identidade na diferença; apesar de alguma tendência natural que possamos ter para imaginar esta simplicidade e identidade. A comparação com o teatro não deve nos enganar. Não possuímos a mais remota noção do lugar onde essas cenas são representadas, nem do material de que são compostas.”

Amores, para Hume a mente é um teatro sem plateia, onde as percepções se sucedem de maneira desorganizada.

Agora, de forma um pouco anacrônica, quero falar sobre as discussões que tive no congresso. Há autores como Dennett e Dretske, por exemplo, que tentam fazer uma distinção entre conteúdos que são conscientes e conteúdos que não são conscientes. Esses autores defendem que um conteúdo é consciente quando ele está disponível para uso de outros estados mentais ou do comportamento. Assim, por exemplo, muitas pessoas já tiveram a experiência de dirigir enquanto conversam com alguém ou pensam sobre algum assunto. Ao final do percurso, não se lembram mais do que aconteceu durante o caminho, das ultrapassagens que fizeram ou do sol que se pôs enquanto dirigiam. Isso, na concepção do autor, não significa que o motorista não estava ‘consciente’ do que acontecia enquanto estava dirigindo, apenas que os eventos não se fixaram na memória. Isto é, a pessoa dirigia conscientemente e, por essa razão, foi capaz de executar os movimentos que lhe permitiram chegar viva ao seu destino (Dennett, 1991, p.137-8).

Pessoal, depois de muito tentar compreender a consciência humana, tornei-me cética acerca da possibilidade de diferenciarmos entre os conteúdos conscientes e inconscientes. Hume, de certa forma, me convence de que não somos unidades integradas e conscientes, mas que somos o tempo todo um feixe de percepções em constante mutação. E o que nos faz defender com unhas e dentes a nossa singularidade? Ora, Hume já sabia: alguma razão natural. Que razão natural seria essa? Quanto a isso, tenho meu palpite: Nós primeiro atribuímos uma singularidade aos outros. Necessitamos atribuir-lhes essa singularidade para que possamos compreender e prever o seu comportamento. Essa necessidade altruísta está relacionada à nossa própria característica gregária. Então, habituados a isso, transferimos essa singularidade para o nosso próprio caso. Daí a tendência natural a acreditamos que somos personalidades, egos singulares e fechados, quando na verdade nós não somos isso.


Para ilustrar essas idéias, deixo um vídeo. Não deixem de assistir, só tem 5 min.


http://www.youtube.com/watch?v=gOVsDopXyd4&feature=feedlik


Esperando que se animem com a discussão que estou propondo, abraços com afeto.





Profa. Juliana.


Oi Juliana e demais colegas,

Espero que sua apresentação no Colóquio tenha sido um sucesso!

Vou aproveitar sua postagem para introduzir o assunto da rejeição do ceticismo por parte dos projetos naturalistas contemporâneos a partir do vídeo que você indicou, mas antes faço uma preleção para poder explicar o naturalismo.

Ao colocar sua ‘dúvida metódica’ em prática, Descartes desejava realmente mostrar uma contradição na posição cética, mas seu maior objetivo era chegar à afirmação da possibilidade de nosso conhecimento sobre o mundo. Seu objetivo era o da fundamentação da ciência, dentro um seu projeto todo especial de constituição da física – aliás, projeto que se mostrou furado (sobre isto ver: http://www.scielo.br/pdf/ss/v1n3/a02v1n3.pdf). Ao contrário do que erroneamente se pensa, Descartes não pretendia remover o empírico do campo do conhecimento, mas garantir sua justificação.

Este projeto cartesiano deu errado em dois sentidos. Em primeiro lugar, mesmo que sua dúvida metódica funcione como refutação do ceticismo, seus passos para a fundamentação de nosso acesso ao mundo se baseiam na “dedução” problemática da existência de Deus. Sem Deus, Descartes fica com a certeza de sua existência como ser pensante (res cogitans) e só; é solipsismo demais, mesmo para um misantropo como ele. Seu projeto de fundar o conhecimento sobre o mundo a partir deste “eu” não funciona, e mais, em segundo lugar, acaba por gerar uma cisão que provavelmente seria a última coisa que ele desejaria: uma separação entre filosofia e ciência. Este ideal de filosofia como ‘filosofia primeira’ – no sentido de que ela é a garantidora de todo e qualquer conhecimento, incluso aí a ciência – não responde ao ceticismo, porque aceita seus pressupostos, e gera outros problemas – como a crítica à indução apresentada por Hume.

O naturalismo rejeita a questão como colocada dentro desta tradição. Classificar o naturalismo somente em função de sua admiração pela ciência seria problemático, pois tal atitude é encontrada em autores contrários ao projeto naturalista. O projeto de naturalização da epistemologia tem no artigo de Quine - Epistemologia naturalizada – uma de suas principais formulações contemporâneas e está inserido em uma linha de argumentação em favor do projeto naturalista, que diagnostica a epistemologia tradicional como infrutífera e advoga que o que sabemos do mundo é o que a ciência nos informa. Segundo Quine e outros naturalistas, as preocupações céticas nascem dentro da ciência. Há uma metáfora utilizada por Otto Neurath que faz referência ao barco que se reconstrói durante o percurso, e que é utilizada por Quine para indicar como o processo de constituição do conhecimento ocorre e como as questões céticas são apenas as partes deste barco que são substituídas. Para o projeto naturalista, a filosofia deve ser contínua à ciência.

O vídeo que a Juliana postou sobre a cegueira de mudança é um exemplo de mecanismo cognitivo automático de limitação de atenção. A atenção total produziria uma paralisia do organismo. Alguns alunos devem se lembrar de nossas discussões sobre o conto de Borges, Funes, o memorioso (em português: http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/funes.htm; em espanhol: http://www.dtic.upf.edu/~joan.soler/0910/at/textos/borges/FunesElMemorioso.pdf). Neste sentido nascem as propostas de se tomar o conhecimento como o resultado de processos cognitivos confiáveis, isto é, crenças verdadeiras produzidas por mecanismos de apreensão do mundo que se mostraram bem sucedidos – é o que em epistemologia se chama de projeto confiabilista (ou fiabilista) e externalista. Segundo o projeto naturalista, se desejamos realizar investigação relevante sobre o conhecimento, devemos pesquisar sobre os mecanismos cognitivos humanos que são resultado de uma história pregressa de adaptação ao meio. Isto nos permitiria identificar a posteriori (externalismo) quais mecanismos são confiáveis na geração de crenças verdadeiras sobre o mundo (confiabilismo).

Se isto responde à questão cética (“Como podemos estar certos de que sabemos alguma coisa?”) é caso a se discutir, mas para os naturalistas, o correto é esquecer os céticos e suas questões, que só se pronunciam dentro de um quadro de aceitação de conhecimento, seja de processos básicos cognitivos, seja de ciência.

Abraços,

José Eduardo

2 comentários:

  1. Oi, amiga Roche.
    Obrigada pela parte que me toca!
    Beijos,
    Juliana.

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  2. Meus caros Mestres

    Obrigada pela generosidade de vocês em dividir as vossas dúvidas e opiniões conosco.

    Serenidade e harmonia,

    Lee

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