segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Texto da aluna Luciana Lamenza

As persistentes tendências de prevalência do ego, em detrimento do mundo e dos outros, nascidas a partir das perspectivas cartesiana e kantiana.
Meu trabalho pretende analisar a questão do ego em Descartes e em Kant e como tal projeto funda a egolatria na modernidade.

Introdução: o que é modernidade?
Em princípio, devo definir brevemente o que é modernidade e como nos situamos hoje na evolução da história da humanidade, do ponto de vista existencial, cultural e social.
Segundo Giddens a definiu, a modernidade refere-se a estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que posteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência. Hoje, no início do século XXI, muitos argumentam que estamos no limiar de uma nova era, a qual está nos levando para além da própria modernidade. Uma estonteante variedade de termos tem surgido para nomear esta transição, alguns dos quais se referem positivamente à emergência de um novo tipo de sistema social (tal como a “sociedade da informação” ou a “sociedade de consumo”), mas cuja maioria sugere que, mais que um estado de coisas precedente, está chegando a um encerramento (“pós-modernidade”, “pós-modernismo”, “sociedade pós-industrial” e assim por diante). Alguns argumentam que estamos nos deslocando de um sistema baseado na manufatura de bens materiais para outro relacionado mais centralmente com a informação[1]. Mas, temos que reconhecer, o cenário da modernidade é muito mais complexo do que isso. Muitos de nós temos sido apanhados num universo de eventos que não compreendemos plenamente e que parecem em grande parte estar fora de nosso controle. Não basta meramente inventar novos termos e novas definições, pois, de fato, em vez de estarmos entrando num período de pós-modernidade, estamos alcançando um período em que as consequências da modernidade estão se tornando extremamente radicalizadas e universalizadas, como nunca antes.
Os modos de vida produzidos pela modernidade nos desvencilharam de todos os tipos tradicionais de ordem social, de uma maneira que não tem precedentes na história da humanidade. As transformações trazidas pela modernidade são mais profundas que as dos períodos precedentes. Elas estabeleceram formas de interconexão social que cobrem o globo e vieram, ainda, a alterar algumas das mais íntimas e pessoais características de nossa existência cotidiana[2].
São diversas as descontinuidades que separam as instituições sociais modernas das ordens sociais tradicionais. Uma é o ritmo de mudança, que a modernidade põe em movimento de maneira extrema – não só no que se refere à tecnologia, mas também em todas as outras esferas. Em segundo lugar, vem o escopo da mudança. À medida que várias áreas do globo são postas em interconexão, ondas de transformação social se espalham através de praticamente toda a superfície da Terra. Uma terceira característica diz respeito à natureza intrínseca das instituições modernas. Algumas formas sociais modernas simplesmente não se encontram em períodos históricos precedentes – tais como o sistema político do estado-nação, a dependência por atacado da produção de fontes de energia inanimadas ou a completa transformação em mercadoria de produtos e trabalho assalariado[3].
A modernidade, como qualquer um de nós que vive no início do século XXI pode constatar, é um fenômeno de dois gumes. O desenvolvimento das instituições sociais modernas e sua difusão em escala mundial criaram oportunidades bem maiores para os seres humanos gozarem de uma existência segura e gratificante que qualquer tipo de sistema pré-moderno. Mas a modernidade também tem o seu lado sombrio, que se tornou muito aparente no século da guerra – o século XX.
A ciência moderna empregou todos os esforços para tornar-se tecnicamente eficaz. A técnica, por sua vez, esvaziou a ciência de todo e qualquer projeto que não lhe servisse. O homem ocidental construiu seu próprio mundo por meio da técnica e da manipulação das coisas. E as coisas reduzidas à manipulação tornam-se passivas, privadas de independência e consistência própria, em outras palavras, privadas de “ser”. A atitude diante das coisas e do mundo leva o homem a tornar-se ele mesmo uma mercadoria[4]. Segundo Heidegger percebeu, o avanço da técnica traz em seu movimento a profunda e constante desumanização do homem.
Por conseguinte, com a crescente mecanização da vida moderna, com o desenvolvimento tecnológico, abrindo inúmeras oportunidades de construir o próprio conhecimento, aprofunda-se a crise do humanismo. Ou seja, esta constante capacidade da técnica de se elevar além do homem provoca também uma reação colateral no próprio ser humano.
O que aconteceu com o ser do homem? Todos os valores que pareciam seguros se perderam? Vivemos um tempo de incompreensão, um tempo de não-valor.
Diariamente, nos encontramos diante do niilismo econômico da fome “sagrada” do dinheiro, do niilismo político do poder pelo poder, do niilismo cínico que destrói sempre os mais fracos, do niilismo social que para libertar tem que matar, do niilismo vital que esvazia a vida de sentido, em que a vida não vale mais nada.
Utilizando a imagem criada por Nietzsche, a morte de Deus condenou-nos ao vazio metafísico – o qual se confunde com a violência. Vivemos na assim chamada cultura dos simulacros, na qual não há mais nada, não existem verdades, não há valores, tampouco crenças: nem naturais nem sobrenaturais; não há convicções, mesmo no que diz respeito à ciência. Os grandes mistérios estão mortos, uma vez que não permitimos que afetem a nossa vida concreta. E, ainda, não nos sentimos felizes e alegres diante da história da criação do mundo, de nossa origem e de nosso destino. Não celebramos a grande alegria que nos foi dada. A modernidade instituiu uma cultura centrada no homem, sua segurança, seu conforto, revelando e desvelando, no entanto, um novo homem: que, desprovido de arte e de mística, ignora o mundo que o cerca.
Diante do estado de coisas que descrevi, conclui-se que o homem contemporâneo vê-se envolvido por uma nova inquietação. Tal aflição tem a ver com o fato de o ser humano moderno amar-se e conhecer-se capaz de tudo; percebe-se como o mestre da própria vida e da própria morte. Ao mesmo tempo, porém, presente à sensação de poder fazer tudo, o homem experimenta a impossibilidade de não poder fazer grande coisa. A crise de nossa cultura moderna de certo modo nasce desta contradição.
A intenção da modernidade não era a de superar uma rigidez de matriz metafísica que sufocava a liberdade do homem na gestão-transformação da realidade? A intenção do homem não era recriar a história abrindo-se a diversas novas possibilidades, utilizando a racionalização como nova ética em substituição à religião?
O que deu errado? Hoje vivemos em completa insegurança e sem qualquer unidade e solidariedade entre as nações diante dos problemas planetários. Um iminente conflito total entre superpotências pode vir a erradicar completamente a humanidade. Portanto, o nosso maior inimigo somos nós mesmos e a nossa própria razão, pois, no fim, a razão não possui certezas, cada um a pensa como quer.
Nesse sentido, a fim de retratar os modernos desígnios e o lugar preciso da razão nos dias de hoje, que fale o poeta, pois ninguém melhor que Drummond para nos descrever a realidade:
[...] Aprenderás muitas leis, Luís Maurício. Mas se as esqueceres depressa,
outras mais altas descobrirás, e é então que a vida começa,

e recomeça, e a todo instante é outra: tudo é distinto de tudo,
e anda o silêncio, e fala o nevoento horizonte; e sabe guiar-nos o mundo.

Pois a linguagem planta as suas árvores no homem e quer vê-las cobertas
de folhas, de signos, de obscuros sentimentos, e avenidas desertas

são apenas as que vemos sem ver, há pelo menos formigas
atarefadas, e pedras felizes ao sol, e projetos de cantigas

que alguém um dia cantará, Luís Maurício. Procura deslindar o canto.
Ou antes, não procures. Ele se oferecerá sob forma de pranto

ou de riso. E te acompanhará, Luís Maurício. E as palavras serão servas
de estranha majestade. É tudo estranho. Medita, por exemplo, as ervas,

 enquanto és pequeno e teu instinto, solerte, festivamente se aventura
até o âmago das coisas. A que veio, que pode, quanto dura
essa discreta forma verde, entre formas?[5] [...]

Meu trabalho tem a difícil missão de tentar identificar os motivos de tal desilusão. Não é tarefa fácil, mas abordarei as teorias modernas de Descartes e Kant e identificarei como tais teorias fundaram a egolatria do homem, a construção de seus vínculos cegos e arrogantes e de sua exacerbada subjetividade como caminho para um poder infinito.



[1] Anthony Giddens, As consequências da Modernidade (São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1991).
[2] Anthony Giddens, As consequências da Modernidade (São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1991).
[3] Anthony Giddens, As consequências da Modernidade (São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1991).
[4] Evilázio Teixeira, Modernidade e Pós-modernidade: Luzes e Sombras (Cadernos IHU Ideias, ano 4, nº 50, 2006).
[5] Carlos Drummond de Andrade, A Luís Maurício, Infante.

Nenhum comentário:

Postar um comentário