EM QUE COINCIDEM AS VISÕES
ANTROPOLÓGICAS DE MONTAIGNE E PASCAL?
Alfredo de Moraes Rêgo Carneiro
Resumo: A Era Moderna
corresponde a um aumento da diversidade cultural, causada pela decadência do sistema feudal e surgimento do capitalismo. A
Igreja Católica ainda mantém forte influência e os pensadores modernos, como
Montaigne e Pascal, enfrentam a pluralidade de perspectivas que surge com o
choque de culturas e costumes. É dentro desta nova realidade que os filósofos
modernos deverão responder o que é a natureza humana. Tanto Montaigne como Pascal
eram pensadores cristãos, o que decisivamente influenciou suas filosofias, mas,
apesar disso, suas ideias diferem em vários pontos, coincidindo apenas na
percepção do homem como ser limitado e vítima das circunstâncias, restando a
ele apenas salvação pela aceitação da fé cristã.
Palavras
Chave: Blaise Pascal, Michel de Montaigne, Antropologia Filosófica, Filosofia.
1. INTRODUÇÃO
As visões
antropológicas de Montaigne e Pascal foram concebidas durante o
período Moderno, que vai do século XVI ao XVIII. A influência do cristianismo
ainda é muito forte, com a exceção do mundo oriental. No entanto, essa
época corresponde a uma circulação cada vez maior, na Europa, de culturas,
costumes e valores, além de um crescente questionamento do poder da igreja católica.
É esse também o período da reforma protestante e do renascimento.
Pensar o homem,
durante a Idade Moderna, implicava em responder aos questionamentos que surgem
da pluralidade de perspectivas, ocorrida com o encontro de povos estimulado
pelo surgimento do capitalismo e derrocada do feudalismo. O relativismo
cultural e o ceticismo se tornam ideias cada vez mais difundidas. Os costumes
considerados sagrados por um povo eram heréticos para outro, o Deus cristão se
confronta com outros deuses e outras visões de mundo. Devido a isso, alguns filósofos
modernos, entre eles Montaigne e Locke, passam a definir o homem como vítima do
destino, não persistindo nele singularidade alguma além dos estímulos do meio
em que vive. Os pensadores inseridos nesse período têm de se haver como todas
essas questões para responder uma das perguntas fundamentais da filosofia: o
que é o homem?
Montaigne não se deixa captar tão facilmente,
devido à ambiguidade e contradição que permeiam sua principal obra, Os
Ensaios. A falta de sistematização reflete sua perspectiva cética baseada
no relativismo cultural.
Para Montaigne, o conhecimento
humano não é nada confiável, pois, sofrendo a influência de fatores diversos,
não pode ser avaliado com precisão. Segundo ele, “dois homens nunca tiveram a
mesma opinião sobre a mesma coisa”. Como Sócrates, que disse saber apenas que
nada sabia, Montaigne iguala o dogmatismo à ignorância, e o estilo
não-sistemático de sua filosofia reflete sua opinião de que nossa atitude de
ordenar o conhecimento humano é vã. (OLIVER, 1998, p. 64)
Devido a isso, Montaigne
adotou um estilo de investigação original para sua época, buscando analisar a
si e ao mundo de forma espontânea, saltando de um assunto a outro conforme sua
disposição e interesse. Sua percepção do homem como vítima das circunstâncias e
incapaz de atingir qualquer verdade através da razão é norteadora de seu
ceticismo.
Somos vítimas da inconstância, da
irresolução, da incerteza, do luto, da superstição, da preocupação com a morte,
inclusive o de depois da morte, da ambição, da avareza, do ciúme, da inveja,
dos apetites desregrados e insopitáveis, da guerra, da mentira, da deslealdade,
da intriga, da curiosidade. Pagamos, pois, bem caro a tão decantada razão de
que nos jactamos, e a faculdade de julgar e conhecer, se a alcançamos, é à
custa do número infinito de paixões que nos assaltam sem cessar. (MONTAIGNE,
1972, p.229)
Pascal, por sua
vez, tenta indicar uma ideia mais clara sobre o homem, que vai diretamente ao
encontro da verdade estabelecida pela fé cristã, e critica a falta de
sistematização de Montaigne, relacionando sua falta de clareza a uma visão
deturpada de homem e de mundo, influenciada pelo paganismo e desrespeito a Deus
e à vida. De fato, Montaigne submeteu seu livro, Os Ensaios, à censura Papal e
recebeu ressalvas, mas sem impeditivos à sua publicação. Mesmo assim, Pascal
ataca Montaigne:
Ele inspira uma despreocupação
com a salvação, sem temor e sem arrependimento. Não tendo o seu livro sido
feito para conduzir à piedade, ele não estava obrigado a isso, mas sempre se
está obrigado a não desviar-se dela. Pode-se desculpar os seus sentimentos algo
livres e voluptuosos em alguns encontros da vida, mas não se pode desculpar
seus sentimentos pagãos a respeito da morte. (PASCAL, 2000. p. 279. Pensamento 680).
Pascal aponta o
homem como ser miserável, vítima das circunstâncias, no entanto dotado de
consciência que lhe confere dignidade, pois só o homem, apesar de sua
impotência, é consciente de sua condição.
O homem não é senão um caniço, o
mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante. Mas, ainda que o universo o
esmagasse, o homem seria ainda mais nobre que aquilo que o mata, pois ele sabe
que morre e a vantagem que o universo tem sobre ele. (PASCAL, 2000. p. 86.
Pensamento 200).
2.
O PENSAMENTO DE MONTAIGNE NA APOLOGIA
Montaigne
apresenta sua visão de natureza humana através da defesa dos argumentos do
livro “Teologia Natural ou Livro das
Criaturas”, de Raymond Sebond, presente dado por Pierre Buñel ao pai de
Montaigne. Buñel defendia que a Reforma de Lutero era uma doença que iria
degenerar na disseminação do ateísmo, e a leitura de Sebond era apropriada às
circunstâncias, uma vez que o livro era uma defesa da existência de Deus,
realizada através da demonstração da sabedoria da natureza.
A esse respeito
Buñel mostrava-se clarividente, prevendo, simplesmente pelo raciocínio que esse
princípio de doença degeneraria logo em execrável ateísmo, isso porque o vulgo,
não sendo capaz de julgar as coisas em si, se atém às aparências. Quando se põem
em dúvida certos pontos de sua religião, submetendo-os a seu julgamento, ele
acaba muito rapidamente a sentir a mesma incerteza com todas suas demais
crenças. (MONTAIGNE, 1972, p.209)
Raymond Sebond,
era um médico espanhol do século XIV, e sua obra é um considerada um marco da
Teologia Natural, que tenta provar a existência de Deus sem recorrer a
revelações.
A defesa dos
argumentos de Sebond, realizada por Montaigne no ensaio Apologia a Raymond Sebond, é um artifício utilizado para defender
sua própria visão de natureza humana. Montaigne ataca a razão como algo
limitado e incapaz de apreender a sabedoria divina, que somente poderia ser
percebida através da fé.
Abandonados
unicamente à nossa inteligência, não seremos capazes, pois se assim fosse,
muitos espíritos superiores e privilegiados como os que floresceram nos séculos
passados teriam chegado à fé por intermédio da razão. É somente a fé que nos
revela os inefáveis mistérios de nossa religião e nos confirma sua verdade. (MONTAIGNE, 1972, p.209).
No entanto,
Montaigne tem um estilo que dificulta a definição de sua real posição, uma vez
que, neste ensaio, tanto defende a religião cristã quanto ataca os costumes cristãos.
Sua crítica aos cristãos procura demonstrar que eles mesmos não compreendem e
não seguem os preceitos de sua religião como deveriam.
Deveríamos envergonhar-nos.
O adepto de qualquer seita humana, por estranha que seja, a ela adapta
rigorosamente sua conduta, e nós outros cristãos só nos unimos à nossa divina
doutrina por palavras. Quereis prova? Comparai nossos costumes aos dos
maometanos e dos pagãos e vede quanto os
nossos são inferiores, mesmo quando devido à superioridade de nossa religião deveríamos
brilhar extraordinariamente. Cumpriria que dissessem: são justos, caridosos e
bons, logo devem ser cristãos.
(MONTAIGNE, 1972, p.209).
Ao longo do
ensaio, Montaigne cita vários exemplos de comportamento e lealdade dos animais,
procurando demonstrar a superioridade e sabedoria encontradas na natureza,
principalmente quando comparadas com nosso comportamento e nossa razão. Para Montaigne, as obras dos animais não são sequer
compreendidas pela razão humana e de forma alguma podemos ter a pretensão de nos
sentirmos superiores a eles.
Constatamos que na
maior parte de seus trabalhos e obras os animais nos são superiores e que nossa
arte não consegue imitar-lhes com grande êxito as realizações, e no entanto no
que fazemos, inferior ao que fazem os bichos, pomos toda nossa alma e apelamos
para nossas faculdades. (MONTAIGNE,
1972, p.216)
O aspecto moral
do comportamento dos animais é outro recurso por ele utilizado para atacar a
moral dos homens, julgando-a frágil e condicionada pela cultura e costumes
locais. Mesmo em sua moralidade, os animais seriam superiores a nós.
Se, para sermos justos,
devemos dar a cada um o que lhe é devido, diremos que os animais servem, amam e
defendem seus benfeitores; perseguem e agridem os estranhos e os que os
ofendem, praticando uma justiça igual a nossa. E vemos também que tratam com
equidade perfeita seus filhos. Quanto à amizade praticam-na os animais, sem
dúvida alguma, de forma mais constante e viva do que o homem. (MONTAIGNE, 1972, p.222)
Montaigne é
considerado um cético e adotou o relativismo cultural, o que pode ter influenciado
seu estilo contraditório. Sua obra Ensaios
é uma afirmação desse relativismo, uma vez que não é sistematizada, mas uma
coleção de ensaios que eram escritos de acordo com seu interesse e disposição,
o que reflete sua visão sobre a natureza humana. O homem, para esse filósofo
francês, é vítima das circunstâncias, dos costumes e não tem em si nada de
singular ou verdadeiro, uma vez que a própria verdade é também relativa.
Mediante esse
relativismo, defende a submissão do homem à tradição (no seu caso, a tradição
cristã), uma vez que não existe verdade alguma, é mais seguro e conveniente adotar
a verdade de sua cultura, pois a substituição de uma crença por outra
implicaria, em um curto espaço de tempo, a não ter crença alguma.
Temos, portanto,
quando se apresenta uma nova doutrina, razões de sobra para desconfiar e
lembrar que antes prevalecia a doutrina oposta. Assim como esta foi derrubada
pela recente, no futuro uma terceira substituirá provavelmente a segunda. {...}
Quando me atiram um argumento novo, ponho-me a pensar que o que não pude
resolver, outro resolverá e que dar fé a todas as aparências de que não nos
podemos defender é grande simplicidade. (MONTAIGNE,
1972, p.268)
Por fim,
Montaigne exalta sua própria religião, no entanto, não deixa claro se sua
escolha se deve à crença da superioridade de sua religião ou à conveniência da
submissão à tradição.
Não tampouco pode
ocorrer que o homem se eleve acima de si mesmo e da humanidade, porque só pode
ver com seus olhos e aprender com seus próprios meios. Elevar-se-á, se Deus lhe
quiser dar a mão. Elevar-se-á sob a condição de abandonar seus meios de ação, de
renunciar a eles e se deixar erguer. {...} É nossa fé cristã, e não a virtude
estóica dos filósofos, que pode operar essa divina e milagrosa metamorfose. (MONTAIGNE, 1972, p.283)
3.
O PENSAMENTO DE PASCAL
Se em Montaigne
nós temos um ceticismo que é oriundo do relativismo cultural, em Pascal esse
ceticismo é superado pela percepção de uma “razão do coração”. O homem não é apenas fruto de sua cultura e
seus costumes, mas tem em si uma razão que é além da razão. Dessa forma, Pascal
indica uma concepção de natureza humana formada pela razão e pela emoção.
O coração tem
razões que a razão desconhece; sabe-se disso em mil coisas. Digo que o coração
ama o ser universal naturalmente e a si mesmo naturalmente, conforme ao que se
dedica, e ele se endurece contra um ou outra à sua escolha. Rejeitastes a um e
ficastes com o outro; será pela razão que vos amais? (PASCAL, 2000. p. 164.
Pensamento 423).
Portanto, se em
Descartes a racionalidade se separa da razão, em Pascal teremos uma fusão
desses dois elementos. Pascal, assim como Montaigne, vê o homem como um ser
miserável e subjugado pela natureza, no entanto Pascal indica que ele é o único
com consciência de sua condição, o que o faz mais digno que os outros seres.
Sua natureza racional e emocional o faz perceber sua real condição. Essa
percepção é oriunda da razão do coração.
Se em Montaigne
temos a aceitação da religião cristã por conveniência, em Pascal essa aceitação
é a única forma de restituir a unidade do homem. Pascal defende o cristianismo
como único caminho possível para retornar ao criador. Nossa natureza é
constituída da origem divina e da miséria humana, esta última proveniente do
pecado original. São as razões do coração, contraditórias quando observadas de
forma puramente racional, que restituem a dignidade do homem.
É o coração que
sente a Deus e não a razão. Eis o que é a fé, Deus sensível ao coração, não à
razão. Pensamento
424.
A religião cristã é
a única a tornar o homem amável e feliz ao mesmo tempo; na fidalguia não se
pode ser amável e feliz ao mesmo tempo. Pensamento 426. (PASCAL, 2000. p.164)
Pascal chega a
desprezar as demais religiões como incapazes de restituir esta unidade, pois a
redenção só seria possível através de figura de Jesus Cristo. Não é o caso de
apenas crer em Deus, em uma instância superior que a tudo governa, mas crer em
Deus através de Jesus Cristo.
Não somente nós não
conhecemos a Deus senão por Jesus Cristo, mas não conhecemos a nós mesmos senão
por Jesus Cristo; não conhecemos a vida, a morte senão por Jesus Cristo. Fora
de Jesus Cristo não sabemos é nem nossa vida, nem nossa morte, nem Deus, nem
nós mesmos. Assim, sem as Escrituras, que só têm a Jesus Cristo como objeto,
não conhecemos nada e não vemos senão obscuridade e confusão na natureza de
Deus e na própria natureza. (PASCAL, 2000. p. 157-158. Pensamento 417).
Dessa forma, temos em Pascal uma
concepção da natureza humana que é racional e divina. A imagem de Deus está
impressa no coração do homem, a razão do coração é o sentimento de origem
divina que está além de toda racionalidade. No entanto, a razão do coração, em
Pascal, nos aponta para a verdade absoluta da religião cristã e de Jesus
Cristo. É através da religião cristã que percebemos nossa miséria, oriunda do
pecado original, e ao mesmo tempo, através da reflexão dessa condição, nos
tornamos conscientes. A razão do coração nos dá dignidade e grandeza ao assumir
a parcela divina de nossa natureza.
O próprio Pascal
aponta a contradição entre o racional instrumental e o racional sentimental.
Mas isso se dá pelo fato que a razão não pode compreender aquilo que a
ultrapassa, e que o próprio pensamento racional é ilusório e não pode requerer
para si verdade absoluta, pois a compreensão da verdade está acima da
capacidade racional. A racionalidade sempre será contraditória, pois assume
somente um lado da natureza humana, a saber, o mais miserável. Enquanto que, em
Pascal, o absoluto se revelou na natureza oposta de Jesus Cristo, que era homem
e Deus. E é o homem, então, humano e divino. Tal é a concepção da natureza
humana em Pascal.
4. EM QUE
COINCIDEM AS VISÕES ANTROPOLÓGICAS DE MONTAIGNE E PASCAL?
Apesar das
críticas de Pascal a Montaigne, existem elementos comuns em suas concepções
antropológicas. Tanto Pascal quanto Montaigne advogam que o homem é um ser
miserável e suscetível a todo tipo de influência. Diante disso, Montaigne sugeriu a submissão à
tradição, pois se não temos como obter conhecimento seguro sobre coisa alguma,
é mais conveniente buscar o conforto das verdades estabelecidas. Pascal, por
sua vez, percebe a condição vulnerável do homem, mas indica que o homem tem
também uma natureza dupla, divina e humana, e ao ouvir as razões do coração e
aceitar a redenção na figura de Cristo, adquire consciência e dignidade. Apesar
das diferentes soluções dadas por esses filósofos, a percepção de uma condição
humana frágil e suscetível é o fator comum de seus pensamentos.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
MONTAIGNE,
Michel de. Os Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. Editora Abril, 1972.
OLIVER,
Martyn. História Ilustrada da Filosofia. Tradução de Adriano Toledo
Piza. Barueri: Editora Manole,
1998.
PASCAL, Blaise. Pensamentos. Tradução de Mário Laranjeira. (Edição Louis Lafuma). São Paulo: Martins
Fontes, 2000.