APOLOGIA DO
CRISTIANISMO: NO QUE OS ARGUMENTOS DE MONTAIGNE E PASCAL A FAVOR DA RELIGIÃO SE
APROXIMAM
ANITA
MORGENSZTERN
Resumo:
Após
um breve resumo sobre a vida de Michel de Montaigne e de Blaise Pascal, este
artigo apresenta as visões que os filósofos têm em comum sobre a defesa do
cristianismo. São analisadas as obras Pensamentos,
de Pascal, e Apologia de Reymond Sebond,
de Montaigne. Incluídos nesta abordagem estão os conceitos de graça divina,
sentidos como fontes não confiáveis de conhecimento, falácia da ignorância,
utilidade da crença em Deus e o papel dos sentidos para o conhecimento.
Conclui-se que a religião pode ser defendida filosoficamente, como fizeram
Montaigne, Pascal e tantos outros filósofos da Idade Média e contemporânea.
Palavras-chave: Montaigne. Pascal. Apologia.
Cristianismo. Ceticismo.
1. INTRODUÇÃO
Michel de Montaigne, filósofo francês do
século XVI, apresenta uma vertente cética em sua análise do homem. Extremamente
influenciado pelos escritos do Sexto Empírico, Montaigne aplica os pressupostos
céticos ao relativismo que encontra entre culturas e costumes. Pessoas do mundo
inteiro vivem de acordo com princípios tão diferentes, que um conhecimento
objetivo da moral, por exemplo, seria impossível. Mas esse seu ceticismo não o
impediu de defender a religião cristã.
Um dos textos em que Montaigne mais
defende a fé cristã é a Apologia de
Raymond Sebond. Nele, o filósofo fala sobre suas concepções de
racionalidade, religião, ceticismo, relativismo de costumes, aplicações
práticas da razão, entre outros. Porém, o assunto mais latente, em torno do
qual giram os outros comentários, parece ser o da defesa da religião por meio
da razão, mas sem ter como fundamento da aceitação da religião o uso da razão.
Ou seja, ele se utiliza de argumentos racionais - como quando argumenta a
impossibilidade de um mundo tão complexo ter-se feito sem um criador
(MONTAIGNE, 2004, p.377 e 379) ou quando explica que o fato de não podermos ver
algo não implica que este algo não existe (p.381) - para defender o
cristianismo, mas parece acreditar que é preciso aceitar a revelação da verdade
concedida pela graça divina. Falando sobre a obra que interpreta, o livro de
Raymond Sebond, Montaigne resume o objetivo de sua apologia: “O objetivo deste
é ousado e corajoso, pois se propõe estabelecer e provar, contra os ateus,
todos os artigos de fé da religião cristã...” (MONTAIGNE, 2004, p. 371).
Pascal, depois de realizar importantes
estudos em matemática, geometria e física, passa a se dedicar exclusivamente à
filosofia como explicação e justificação da religião cristã. Ele foi
influenciado pelo jansenismo, doutrina cristã que enfatizava a corrupção e
miséria da natureza humana, o que transparece em seus escritos teológicos. A
doutrina de Cornélio Jansênio, baseada em sua interpretação dos escritos de
Santo Agostinho, foca a dualidade da natureza humana que pode pender para a
graça ou para a concupiscência. A miséria do ser humano deve-se ao pecado
original e, desde então, é inerente ao homem. Essa condição miserável do homem
está relacionada ao seu modo de viver, suas crenças e à prioridade que dá às
coisas que não têm real valor. O ser humano, segundo Pascal, sucumbe às suas
paixões e não consegue julgar por si próprio que os prazeres materiais são
supérfluos e que a miséria do homem consiste na negação da palavra de Deus. O
homem tem a capacidade de se transcender e pensar sobre si mesmo e sobre o
mundo, mas apenas aceitando o cristianismo é que ele pode conseguir a salvação
e contemplar a realidade como um esquema divino do qual o homem faz parte.
Mas que concluam o
que quiserem contra o deísmo, nada concluirão contra a religião cristã, que
consiste propriamente no mistério do redentor, o qual, unindo nele as duas
naturezas, a divina e a humana, tirou os homens da corrupção do pecado para
reconciliá-los com Deus em sua pessoa divina. (Pensamento 556: Brunschvicg. PASCAL,
1973, p. 177)
Antes de iniciar o artigo, faz-se
necessário o esclarecimento de três conceitos que serão abordados para
diferenciar e caracterizar as abordagens de Montaigne e Pascal quanto à
religião cristã e à existência de Deus. São eles, deísmo, teísmo e fideísmo.
Fideísmo é a noção de que não se pode
explicar a fé com argumentos racionais. As crenças religiosas não poderiam ser
justificadas com argumentos, mas somente por meio da fé e da graça divina. Esse
conceito pressupõe a limitação da razão humana para compreender questões
transcendentes, como a existência de Deus.
Deísmo é o conceito segundo o qual
existe um Deus criador, mas ele não interfere na criação e não revela nenhum
código de conduta moral. A ética do homem, de acordo com essa noção, deve ser
derivada da razão.
Teísmo é a concepção adotada pelas
grandes religiões monoteístas. Deus é o único criador, é onisciente, onipotente
e participa da sua criação. Ele é um ser ético, perfeitamente bom, que revela
ao ser humano os valores morais que este tem de seguir.
Montaigne e Pascal trazem uma abordagem
teísta acerca de Deus, já que defendem a religião cristã. Montaigne, em algumas
passagens, demonstra um certo fideísmo ao defender a adoção do cristianismo
como resultado da aceitação da graça e da revelação divina. Pascal, apesar de
advogar a graça como dom divino que faz parte da natureza humana (junto com a
corrupção do pecado), acreditava ser possível, até um certo ponto, fundamentar
a fé com a razão.
Apresento alguns temas em comum de
defesa da fé cristã apresentados pelos dois filósofos em suas obras Apologia de Reymond Sebond (Montaigne) e
Pensamentos (Pascal), tentando
responder à questão “No que os argumentos de Pascal e Montaigne em favor da
religião se aproximam?”.
2. GRAÇA E REVELAÇÃO
DIVINA
COMO ÚNICO MODO DE CONHECER DEUS
O conceito de revelação divina como
forma de conhecer Deus é defendido pelos dois filósofos. O argumento, que de
certa forma toca o ceticismo, é o de que o ser humano não tem capacidade de
conhecer Deus se contar apenas com seus próprios esforços racionais. Em certas
passagens das obras analisadas, Montaigne e Pascal tentam nos mostrar que a
racionalidade do ser humano é insuficiente para abarcar a realidade metafísica
de Deus, com a distinção de que a crítica epistemológica de Montaigne diz
respeito a todas as áreas de conhecimento. Já Pascal, baseado em sua concepção
dualista da natureza humana, direciona sua crítica à capacidade do homem
conhecer Deus, e não as ciências naturais, pelas vias da razão. Apesar disso,
não se pode afirmar que Pascal seja também fideísta, pois ele apresenta argumentos
racionais que indicam a existência de Deus (Pensamento 233: Brunschvicg.
PASCAL, 1973, p.98 até 101). A posição cética de Montaigne é fundamentada em
suas viagens e constatações de relativismo cultural entre os povos. “Há povos
entre os quais as mulheres pertencem a vários homens e outros em que cada um
tem a sua”, “(...) Acreditam em gigantes. Mulheres e servidores disputam a
honra de morrer com o marido ou senhor. O primogênito herda tudo o que possui o
pai.” (MONTAIGNE, 2004, p. 401 e 481) O seguinte trecho é explícito quanto à
revelação divina como forma de conhecimento: “O
laço que deveria (...) envolver nossa alma e ligá-la ao Criador não deveria
decorrer de nossas considerações, nem de nossos raciocínios, e sim de um abraço
divino e sobrenatural, (...) emanado de Deus e Sua graça.” (MONTAIGNE, 2004, p.
376). Eis um exemplo claro de como Montaigne preconizava uma espécie
de suspensão da razão e entrega à crença cristã. Pascal traz a graça como
elemento constituinte do ser humano. Apesar de não demonstrar o fideísmo de
algumas passagens da Apologia de Montaigne, Pascal reforça o peso da graça em
oposição à razão com estes trechos, entre outros: “(...) pois ter sempre provas
à mão é demasiado penoso.” e “A fé é um dom de Deus; não imagineis que a
consideramos um dom do raciocínio.” (Pensamentos 252 e 279: Bruschvicg. PASCAL,
1973, p. 107 e 111). A graça de Deus seria o elemento responsável por realizar
a união do humano ao divino, reconstituindo a unidade da natureza dual do
homem. “É em vão, ó homens, que procurais em vós mesmos o remédio para as
vossas misérias.” (Pensamento 430: Bruschvicg. PASCAL, p.144). Todos esses
trechos também apontam para o caráter transcendente de Deus, que está além do
entendimento humano. Pela razão, o homem deve entender que não pode entender
Deus sozinho.
3. ARGUMENTOS
CONTRA OS ATEUS
Para se defender das críticas contra a
religião, um dos ataques pode ser direcionado a quem não acredita nela. Os
argumentos dos ateus são refutados por Montaigne e Pascal. Montaigne tende para
o argumento de que nenhum ateu o é verdadeiramente. Segundo ele, os ateus são
rebeldes que querem aparecer, mas que, na hora da dificuldade, acabam apelando
para Deus, não conseguem internalizar suas convicções ateístas a ponto de
realmente seguirem não acreditando em Deus em todas as situações da vida, como
está escrito no trecho “...se esses ateus são bastante loucos para se dizerem
ateus, não são suficientemente fortes para implantar tal convicção em sua
consciência.” (MONTAIGNE, 2004, p.376). Montaigne faz também uma espécie de
“ataque pessoal” contra os ateus, que seriam pessoas maliciosas, inclinadas a
interpretar qualquer coisa sob o olhar do ateísmo. “Para o ateu, tudo o que se
escreve tem alguma relação com o ateísmo e ele envenena com seu próprio veneno
o mais inocente pensamento.” (MONTAIGNE, 2004, P.378). Pascal já elabora mais
sua crítica aos ateus e defende que eles não conhecem a fundo a religião que
tentam atacar. Além disso, ele monta o argumento de que não há razões nem
conhecimento suficiente para que eles provem que alguns aspectos da religião
sejam falsos, como por exemplo, a imaterialidade da alma e a ressureição. Para
ele, “os ateus devem dizer coisas perfeitamente claras; não é perfeitamente claro
que a alma seja material.” e “Que razões eles têm para dizer que não se pode
ressuscitar?”. (Pensamentos 221 e 222: Brunschvicg. PASCAL, 1973, p. 96). Ou
seja, os ateus não conseguiriam comprovar, por meio de seu principal método, o
do raciocínio, que alguns elementos do cristianismo são falsos. Pascal também
tenta argumentar a favor de alguns temas controversos que os ateus geralmente
usam para refutar a plausibilidade do cristianismo. Nos pensamentos 222, 223 e
224 da edição de Brunschvicg (PASCAL, 1973, P.96), o filósofo defende a
ressureição e o parto da virgem. A lógica é a seguinte: nascer é “chegar a ser”
e ressurgir é voltar a ser. Seria mais fácil voltar a ser do que chegar a ser.
Não é porque estamos acostumados com a ideia do nascimento e que não
presenciamos uma ressureição que devemos rejeitar esta última. Quanto ao parto
da virgem, ele faz a analogia da galinha, que bota ovos sem a ajuda do galo.
Não poderíamos, segundo Pascal, ter a garantia de que a galinha não tenha
formado os ovos independentemente. Isto é, esta é uma possibilidade que, assim
como a do parto virgem, poderia ser considerada como possível, e não como
completamente absurda.
4. ARGUMENTO CONTRA A FALÁCIA DA IGNORÂNCIA
Dizer que uma coisa não é verdadeira
porque não podemos prová-la empiricamente é uma espécie de falácia da
ignorância. É o argumento de que se não conhecemos, é porque não existe. Mais
especificamente, os opositores do deísmo ou do teísmo muitas vezes se utilizam
desta falácia para comprovar a inexistência de Deus. Como comprovar
empiricamente a existência de um ser que, por definição, é imaterial e está
além do espaço e do tempo? Isso foi refutado
inúmeras vezes ao longo da história com descobertas que o homem acreditava não
serem possíveis. Apesar de essas descobertas serem científicas/empíricas, a
ideia é que há a possibilidade de existirem coisas que não podemos ainda
enxergar. Se não se descobriu até hoje vida em outros planetas, quer dizer que
não existe vida em outros planetas? “Se tudo o que não vemos não existisse,
nossa ciência se acharia muito empobrecida.” (MONTAIGNE, 2004, p.381).
Essa linha de argumentação é usada por
Montaigne e Pascal. “Nada vemos que se assemelhe ao sol, mas do fato de nada
termos visto de semelhante concluiremos que não existe, como não existiriam
seus movimentos de rotação porque não conhecemos coisa equivalente?”
(MONTAIGNE, 2004, p.381) O fato de não podermos provar empiricamente a
existência de Deus não significa que Ele não exista. Para isso, Montaigne cita
Santo Agostinho, que em sua defesa da existência de Deus, “cita-lhes fatos
conhecidos e indiscutíveis que o homem confessa não poder explicar.” (MONTAIGNE,
2004, p. 378-379). Quando faz sua longa descrição sobre os animais e os compara
ao ser humano, Montaigne conclui: “É portanto inexplicável a nossa vaidade de
querer considerar inferior e interpretar desdenhosamente o que não somos
capazes nem de imitar, nem de entender.” (MONTAIGNE, 2004, p.403).
Montaigne ressalta a arrogância do homem
de achar que sabe tudo e de pensar que o que não sabe, não existe. A própria
característica do transcendente, do “milagre” é algo que deveria fazer o homem
acreditar em Deus. “O mal do homem está em pensar que sabe” e “Deparar com algo
incrível é para o cristão uma oportunidade de crer.” (MONTAIGNE, 2004, p.409 e
p.417).
Pascal é direto: “Nem tudo o que é
incompreensível deixa de existir.” (Pensamento 430:Brunschvicg. PASCAL, 1973,
p. 145). Aqui mais uma vez tem-se a comparação com a ciência e a analogia de
que o homem não pode enxergar toda a realidade. E isso não significa que ela
não exista. Pascal ressalta também a pequenez e a limitação da racionalidade do
homem. “É incrível que Deus se nos una? Essa consideração só decorre da visão
da nossa baixeza. (...) reconhecei que somos tão baixos que somos incapazes de
conhecer se sua misericórdia pode tornar-nos dignos dele.” (Pensamento 430:
Brunschvicg. PASCAL, 1973, p. 145). A limitação da racionalidade humana serve
de base para o argumento de que o conhecimento do homem não é a medida da realidade.
5. QUAL A
UTILIDADE DA RELIGIÃO/CRENÇA EM DEUS?
Como explicado em 2., há traços de
fideísmo na obra de Montaigne. O ceticismo como filosofia acaba negando a
própria filosofia quando versa sobre religião. Para Montaigne, o “mal do homem
está em pensar que sabe” (MONTAIGNE, 2004, p. 409). De acordo com o filósofo, a
crença em Deus, em geral, é uma questão de hábitos culturais. Quem nasce numa
família católica, por exemplo, torna-se católico. Quem faz parte de alguma
cultura indígena, segue as crenças e rituais de sua tribo etc. Não que ele ache
que devemos nos conformar com o que nos é imposto, mas ele constata que a
realidade é dessa maneira. Assim, a religião serviria para que as pessoas moldassem
sua conduta. Sendo o cristianismo a verdade revelada, ele aparece como a melhor
opção de comportamento a ser seguido. Para Montaigne, se os cristãos
acreditassem realmente em Deus e nos preceitos de sua religião, não se comportariam
como faziam na época, mas seriam reconhecidos por sua conduta. “Cumpriria que
dissessem: são justos, caridosos, bons, logo devem ser cristãos.” (MONTAIGNE,
2004, p.373). Pascal, por sua vez, tende mais ao argumento de que o homem pode
obter conhecimentos verdadeiros em áreas empíricas (ele próprio era matemático
e físico), mas que em relação a Deus precisamos da ajuda da graça divina, ainda
que seja possível alguma fundamentação racional para a crença em Deus. Para
Pascal, uma das “justificativas práticas” da religião se manifesta na questão
da escolha. O homem, por razões práticas, precisa escolher que conduta seguir,
em que acreditar. Se pela razão não podemos chegar a nenhuma conclusão
concreta, deveríamos escolher a fé e pronto, “já que é preciso necessariamente
escolher” (Pensamento 233: Bruschvicg. PASCAL, 1973, p. 99). Esse “argumento da
decisão” é conhecido como a “aposta de Pascal”. Para o filósofo, é muito mais
útil, “vale mais a pena”, acreditar que Deus existe. O argumento estrutura-se
mais ou menos assim: Se eu acredito em Deus e Ele existe, terei felicidade
eterna. Se eu não acredito em Deus e Ele existe, sofrerei eternamente. Se
acredito em Deus e Ele não existe, vivo uma vida feliz, com a vantagem de ter
os confortos que a religião oferece. Se não acredito em Deus e Ele não existe,
não sofrerei eternamente, mas não terei os confortos da religião, que tornam a
vida mais agradável. Qual dessas hipóteses é mais vantajosa? Qual é menos
arriscada? De acordo com Pascal, analisando-se esses argumentos racionalmente,
chega-se à conclusão de que é melhor acreditar em Deus (Pensamento 233:
Bruschvicg. PASCAL, 1973, p.99 e 100).
6. O PAPEL DOS
SENTIDOS PARA O CONHECIMENTO
Um aspecto marcante da Apologia de Reymond Sebond é a
comparação entre diferentes culturas, o que leva o autor a um relativismo
cultural e moral, e também à comparação entre o homem e os animais e entre os
próprios homens. O objetivo parece ser diminuir a credibilidade que damos aos
nossos sentidos como fontes confiáveis de conhecimento acerca do mundo. Se não
podemos confiar em nossos sentidos, como saber que os raciocínios baseados em
fatos observáveis são verdadeiros? Até mesmo entre um homem e outro há
diferença na percepção pelos sentidos. Como saber quem enxerga a verdadeira
realidade? Montaigne nos traz exemplos simples de como os sentidos nos enganam,
como por exemplo, coisas que parecem ter um aspecto de longe e outro de perto,
o fato de que a icterícia nos faz enxergar amarelo etc. Os animais, por sua
vez, parecem ter sentidos que nós não temos. Talvez os nossos cinco sentidos
não sejam os únicos que existem nos seres vivos. Os animais podem ter sentidos
que o ser humano não conhece e enxergar muito mais além. Há várias citações e
exemplos na Apologia sobre a não confiabilidade dos sentidos. “Como saber se o
gênero humano não comete tolices análogas, em virtude de alguma carência de
sentido, cuja falta faz que em sua maioria as coisas não se mostrem tal qual
são?”, “Que os sentidos dominam muitas vezes a razão e nos impõem sensações que
ela sabe serem falsas é coisa que se vê comumente.” e “Quem estará com a
verdade?”, entre outros (MONTAIGNE, 2004, p.493, 495 e 499). Por isso, levando
esse argumento à questão da religião, Montaigne sustenta que é preciso confiar
na palavra revelada de Deus para termos acesso à verdade. Se os sentidos nos
enganam e nossa razão, além de não poder se basear nos sentidos, não é
suficiente para a compreensão da realidade que nos transcende, a aceitação dos
ensinamentos da religião se torna a alternativa mais plausível para o filósofo.
Pascal também toca o assunto do como
percebemos a realidade. Ele descreve na obra algumas concepções matemáticas e
geométricas que nos fazem ver que o filósofo considerava a percepção sensível
para o conhecimento do mundo. Acontece que, para ele, o homem é muito pequeno
com relação à infinitude de Deus. Ou seja, o conhecimento do que é divino, da
existência e natureza de Deus, nos são proporcionados pela palavra revelada e
pela graça divina. O homem é um ser de natureza dual: sua natureza é afetada
pela corrupção do pecado e pela graça, pela miséria e pela divindade interior, o
que dificulta ao homem que se deixa levar pelos desejos da concupiscência o
conhecimento do que realmente tem valor - o divino, alcançado pela fé e pela
graça. O homem miserável confia em seus sentidos que não lhe provam a
existência de Deus. Os sentidos têm um papel importante no desenvolvimento da
ciência, mas não deveriam atrapalhar o homem a acreditar em Deus.
8. CONCLUSÃO
A investigação filosófica de Pascal e
Montaigne fundamentou, com suas diferenças, a aceitação da fé cristã e procurou
argumentos que pudessem esclarecer e ilustrar como o cristianismo detém a
verdade da palavra revelada por Deus. Montaigne usou, principalmente, de seu
ceticismo com relação a qualquer tipo de conhecimento como base para o argumento
de que o homem não consegue usar apenas a razão para conhecer Deus. Sua
abordagem é em geral fideísta e apela para a enorme diferença de costumes entre
povos e para a fragilidade dos sentidos para chegar à sua conclusão de que
devemos aceitar a palavra revelada. Se
aceitamos o argumento da incapacidade do homem alcançar a verdade por seus
próprios meio limitados, aceitar a palavra revelada por uma fonte divina e
transcendente pode ser possível. Já Pascal, apesar de também advogar a
aceitação da revelação cristã, tem na natureza humana o reflexo de como se dá o
conhecimento do divino. O conhecimento do mundo, dado pelos sentidos, reflete a
natureza mundana (ou corrupta) do homem adquirida com o pecado original. O
conhecimento do divino ocorre por meio da graça que poderia nos levar à crença
na palavra revelada de Deus e, por conseguinte, à salvação. Esse debate, assim
como tantos outros problemas filosóficos, persiste até os dias de hoje,
assumindo diferentes formas (razão x fé, ciência x religião, ateus x crentes)
e, claro, em contextos diferentes daqueles do século XVI de Pascal e Montaigne.
Mas a questão ainda é controversa e leva em consideração muitos dos argumentos
trazidos pelos filósofos citados. Um exemplo atual é o do filósofo americano
William Lane Craig. Ele defende o cristianismo com argumentos racionais e
lógicos, travando famosos debates com ateus. Assim como Montaigne e Pascal,
Craig usa a razão para sua apologia da religião, mas também defende a crença da
graça e na palavra revelada como o único modo de se chegar à verdade sobre Deus.
Ele representa como ainda é possível, assim como fizeram Montaigne, Pascal e
outros pensadores da Idade Média, a defesa filosófica da crença religiosa.
Referências
bibliográficas
CRAIG, William Lane. É possível acreditar em
Deus usando a razão. Veja.
25/03/2012. Entrevista concedida a Marco
Túlio Pires. Disponível em: http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia/e-possivel-acreditar-em-deus-usando-a-razao-afirma-william-lane-craig. Acesso: 6 de maio de
2012.
KENNY, Anthony. A New History of Western Philosophy.
Oxford: Oxford University Press, 2010.
MONTAIGNE, Michel. Ensaios. Vol.
1. São Paulo: Nova Cultural, 2004.
PASCAL, Blaise. Pensamentos. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Ed. Abril, 1973.
SAKA, Paul. Pascal’s
wager about God. Internet
Encyclopedia of Philosophy. 20/04/2005. Disponível em: http://www.iep.utm.edu/pasc-wag/. Acesso: 14 de
maio de 2012.
UCB (Universidade Católica de Brasília). Antropologia filosófica. Conteúdo da
disciplina on line. Brasília: UCB Virtual, S. D.
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